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On Empire Collapse, State Fragmentation, and Balance of Power and Social Imaginaries in World History.
Origin and Legitimating Function of the Founding Fathers in the Modern Sociopolitical Itinerary of Nations (1808-1989).
By Joaquín E. Meabe, Jorge G. Paredes M., Eduardo R. Saguier and the collaboration of Maximiliano Korstanje (translation by Estela Herrera) .

Reviews

A nova história de Dom João VI

Até agora, ele era conhecido como um rei bobo, fraco e comilão. Pesquisas recentes revelam um estadista ousado e inovador – que criou os alicerces da nação brasileira

leandro loyola

Dom joão VI, rei de Portugal, era um homem baixo, gordo e feio. Tinha feridas na perna. Era religioso e comilão. Viveu a maior parte de seu reinado num palácio, em Mafra, enquanto sua mulher, a princesa Carlota Joaquina, morava noutro, em Queluz. Como governante, dom João era conhecido por empurrar as decisões com sua barriga avantajada. Ele é uma das figuras mais ridicularizadas da História brasileira, popularizado pela alcunha de “dom João Charuto”. Em sua imagem mais difundida, no filme Carlota Joaquina, o ator Marco Nanini vive um rei mal-ajambrado, trôpego e comedor compulsivo de coxinhas de frango, que fugiu covardemente de Portugal para se encostar no Rio de Janeiro. Por aqui, nada teria feito além de comer em excesso e de ser enganado pela mulher. A atuação de Nanini é divertida, mas as pesquisas mais recentes dos historiadores revelam que seu personagem não corresponde necessariamente à realidade. Das dezenas de livros lançados recentemente para comemorar os 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil – completados na semana passada –, duas novas biografias se destacam. Elas mostram um rei completamente diferente da imagem estereotipada. Dom João foi um estadista inovador – ainda que por necessidade e sem muita consciência do que fazia – e um monarca que plantou a semente da nação que um dia se tornaria o Brasil.

Neste ano, saiu em Portugal D. João VI, biografia escrita pelos historiadores portugueses Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa. A outra está sendo finalizada pela historiadora Lúcia Bastos, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e será lançada no meio do ano. Os dois livros tentam limpar a imagem caricata de dom João para mergulhar em seu reinado. “A figura dele sempre suscitou histórias anedóticas, que permitia abordagens popularmente atrativas”, diz Fernando Dores Costa, do Departamento de História do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. “Mas as histórias são difíceis de comprovar. Elas são parte do jogo político.” O primeiro mito a cair é o famoso caso das coxinhas de frango. “Não há nenhum dado que comprove essa história”, afirma Lúcia Bastos.

As duas biografias são uma oportunidade para separar a comédia e conhecer a fundo o legado de dom João, seu governo e seu papel na história do Brasil e na de Portugal. A última vez que dom João foi estudado com afinco foi há cem anos, no clássico D. João VI no Brasil, de Oliveira Lima, publicado em 1908. Das novas pesquisas surge um governante que tinha limitações, mas enfrentou uma conjuntura totalmente adversa e sobreviveu a ela, apesar de governar um país pequeno, empobrecido e decadente como o Portugal do começo do século XIX. Ainda foi capaz, também, de dar início ao processo de criação de uma nação, o Brasil. “Foi a vinda de dom João que tornou possível a existência do Brasil”, afirma o historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Muitos historiadores apontam a chegada de dom João como um passo fundamental para a constituição da unidade nacional. Formado por províncias tão diferentes e separadas, o Brasil é um caso raro na América colonizada por Portugal e Espanha. Enfrentou crises separatistas, mas acabou por se consolidar como país único, num continente onde o mais comum foi a fragmentação dos impérios em pequenos Estados. Essa foi a maior, mas não a única, contribuição de dom João. Eis as mais representativas em seu legado:

• Ao desembarcar no Brasil, dom João assinou a abertura dos portos, fato que completa 200 anos nesta semana. A abertura dos portos rompeu o eixo do sistema colonial em vigor. Após 300 anos, o Brasil começou a ter relações comerciais com outros países, além de Portugal. Foi esse o embrião de uma idéia que, ao longo da história brasileira, teve fluxos e refluxos, mas se manteve como central para o desenvolvimento de nossa economia: o livre-comércio.

• Em 1808, dom João autorizou a impressão de livros, documentos e jornais no Brasil. A instituição da “Impressão Régia” foi um passo decisivo para a dispersão de idéias, informação e cultura no país, ainda que a maioria da população fosse analfabeta. Foi também dom João quem fundou o primeiro teatro no Brasil, então Teatro S. João (hoje Teatro João Caetano), no Rio de Janeiro.

• Ainda em 1808, dom João fundou o Banco do Brasil, cuja função era administrar o tesouro real. Foi um momento crucial em nossa história econômica. A partir daí, o Brasil passou a ter um sistema financeiro.

Nada disso estava planejado quando dom João embarcou para o Brasil. Ele decidiu vir para cá no fim de novembro de 1807. Portugal vivia uma fase difícil na geopolítica européia. Havia décadas deixara de ser uma grande potência. O país estava encurralado numa guerra entre Inglaterra e a França de Napoleão Bonaparte. Napoleão conquistava a Europa com seus exércitos e ficava a cada dia mais claro que dom João perderia seu reino. Até 1807, a diplomacia portuguesa procurara manter-se neutra no conflito. Até que não foi mais possível. O exército de Napoleão estava a poucos quilômetros de Portugal, e os franceses haviam firmado um tratado com a Espanha para dividir o país. “A decisão de partir para o Brasil não foi propriamente uma decisão. Chegara a um ponto em que não havia outra hipótese”, diz o português Fernando Dores Costa.

A saída foi às pressas, mas era planejada em segredo havia meses. Toda a bagagem da Família Real estava pronta. Os livros da Biblioteca Real haviam sido embalados, mas, na pressa do embarque, foram esquecidos no porto de Lisboa. Só chegaram ao Brasil em 1810 e formaram a base do acervo da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. A pressa também fez com que muitos nobres embarcassem num dos 19 navios apenas com a roupa do corpo. Ao saber da decisão de dom João, o povo português assustou-se. Numa monarquia absolutista, o rei era o dono do Estado. “Havia um clima de estupefação em Lisboa”, diz Dores Costa. A viagem foi duríssima. Os navios se separaram na altura da Ilha da Madeira. Dom João demorou 54 dias para chegar ao Brasil. Em alguns navios, a falta de higiene provocou a dispersão de piolhos. Muitas damas da nobreza portuguesa tiveram de raspar os cabelos.

A viagem foi tão exaustiva que dom João não seguiu os planos de ir direto ao Rio de Janeiro, a capital de então. Parou na Bahia, onde descansou por um mês. Só chegou ao Rio no dia 7 de março. De acordo com relatos da época e do historiador Oliveira Lima, dom João e a princesa Carlota Joaquina foram recebidos numa festa popular. Uma multidão se formou para ver o então príncipe regente, dom João, passar sobre a areia branca e vermelha jogada nas ruas. Dom João foi morar num palácio, a Quinta da Boa Vista, cedido por um traficante de escravos. Sua mulher, Carlota Joaquina, foi morar em Botafogo com os filhos. A corte que o acompanhava tinha entre 12 mil e 15 mil pessoas e, segundo pesquisas do historiador Kenneth Light, ocupou casas confiscadas da população.

As ações de dom João nos anos seguintes garantiram à colônia uma série de instituições e direitos que ela não tinha. Abriram para o mundo um território oficialmente fechado havia três séculos. Muitos historiadores afirmam que as medidas de abertura tomadas por dom João e a presença da Família Real contribuíram para o Brasil começar a se formar como um país e manter sua integridade territorial após a Independência de Portugal. “Não havia idéia de unidade, não havia Brasil antes de 1808”, diz o historiador João Paulo Garrido Pimenta, da Universidade de São Paulo. “A vinda da Família Real tornou possível essa unidade do Brasil.” Parece um detalhe, mas é um ponto fundamental. Desde o descobrimento, o que chamamos hoje de Brasil não era uma nação, nem mesmo um país. Era um conjunto de províncias muito diferentes umas das outras, com pouca comunicação entre si e com vocações econômicas distintas. A província do Grão-Pará, um território que inclui o que hoje são os Estados do Pará e Maranhão, mantinha contato marítimo direto com Lisboa e praticamente nenhum intercâmbio com o Rio de Janeiro ou Salvador. O mesmo acontecia com Pernambuco. Quase não havia estradas para ligar uma província à outra e o volume de comércio entre elas era pequeno.

Tal quadro fazia com que iniciativas de maior autonomia e até de separação surgissem em várias ocasiões. “Não vejo como a colônia pudesse manter-se unida sem a presença, em seu território, da fonte de legitimidade representada pela monarquia”, diz o historiador José Murilo de Carvalho. De acordo com ele, se a Família Real não tivesse se mudado para o Rio e se dom João não tivesse feito tudo o que fez, o Brasil teria se esfacelado no processo de independência. “Teríamos, em vez do Brasil, uns cinco países independentes.” Só para comparar, o processo de independência na parte da América colonizada pela Espanha resultou na fragmentação do território em diversos países pequenos, no início do século XIX. O Brasil tornou-se independente em 1822, passou por várias crises separatistas, mas se consolidou como um país único.

A abertura dos portos, assinada logo na chegada a Salvador, no dia 28 de janeiro, é vista como um dado essencial. Ela acabou com o monopólio que Portugal tinha sobre os produtos do Brasil. A Carta Régia libera no Brasil o comércio com outros países, desde que fossem aliados de Portugal. “Ele fez isso porque não tinha alternativa”, diz o historiador Evaldo Cabral de Melo, um crítico de dom João e de sua obra. “Ele precisava da abertura para comerciar e cobrar os impostos da alfândega, que eram quase 90% da arrecadação.” Dois anos depois, dom João assinou uma série de tratados comerciais com a Inglaterra. Eles privilegiavam absurdamente os comerciantes ingleses, que pagavam taxas mais baixas que os de outros países. Além disso, vendiam produtos sem utilidade para os brasileiros, como patins de gelo. Mas dom João não tinha saída. A Inglaterra era a maior potência da época e a única aliada de um Portugal fraco. “Os tratados foram importantes porque o Brasil começou a comerciar não só com Portugal”, diz a historiadora Lúcia Bastos. “Em 1816, são estabelecidos tratados com a França, que ampliam esse comércio.”

A partir da chegada da Família Real, o Brasil começou a ter um sistema financeiro, com a criação do Banco do Brasil. Era um passo importante para um país onde, no século anterior, boa parte do comércio era feita na base da troca, por falta de papel-moeda. Além de não ter dinheiro, o Brasil não tinha livros e jornais. Era proibido imprimir no Brasil. Dom João criou em 1808 a Impressão Régia. Foi liberada a publicação de livros, jornais e documentos, apesar de a censura ser mantida até 1821. Por ordem de dom João foram publicados tratados de filosofia (de autores como Voltaire), de saúde (destaca-se um estudo sobre a saúde pública no Rio de Janeiro) e de economia (o maior exemplo é Observações sobre o Comércio Franco no Brazil, de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu). Em 1815, dom João “elevou” o Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves. Na prática, o novo título não tinha efeito prático. Mas, simbolicamente, o país deixava de ser apenas uma colônia para ser uma parte – a maior – do reino de Portugal.

Por que dom João fez tudo isso? Não foi por ser apaixonado pelo Brasil, ainda que ele gostasse de viver aqui. Foi por uma questão de sobrevivência. “Dom João estava reformando um território fundamental para o bom funcionamento de seu império”, afirma a historiadora Andréa Slemian, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo. “Desde o século anterior, havia o entendimento de que as colônias não deviam ser dominadas pela metrópole, mas sim funcionar em harmonia e sincronia com ela.” O projeto ousado de transferir a corte portuguesa para o Brasil fora formulado na primeira metade do século XVIII por dom Luís da Cunha, um dos maiores diplomatas portugueses. No reinado de dom João VI, a idéia ressurgiu com dom Rodrigo de Souza Coutinho, um de seus ministros mais influentes. Oficialmente, a mudança era uma tentativa de reformular o Império. Como Portugal era uma potência de segunda classe na Europa, poderia se tornar uma grande potência a partir do Brasil, talvez com a conquista de territórios vizinhos da América espanhola. “Na verdade, tudo era um grande jogo de cena para esconder a melancolia, a falta de vergonha com que eles tinham fugido da Europa”, diz o historiador Cabral de Melo.

A instalação da corte transformou o Rio numa cidade portuguesa dentro do Brasil. Isso fez com que as outras províncias fossem chamadas a sustentar esse enclave português em solo brasileiro. Era comum o tesouro real fazer saques antecipados das receitas de impostos pagos pelas províncias para bancar gastos da corte. “As outras províncias tiveram de sustentar o Rio”, afirma Cabral de Melo. O Recife, capital de Pernambuco, não tinha iluminação pública, mas seus habitantes pagavam um imposto para custear a iluminação do Rio. Na volta para Portugal, assim como havia feito quando deixou Portugal, em 1821, dom João levou todo o dinheiro do Banco do Brasil e deixou o país quebrado. A principal conseqüência disso foi a dificuldade de seu filho, dom Pedro I, de administrar o país sem recursos. Meses depois, ele acabaria proclamando nossa independência.

As novas biografias também ajudam a entender como a atribulada vida pessoal de dom João influenciou seu governo. “Ele foi um homem que teve a desgraça de, não tendo as características desejadas para governar, ter se confrontado com uma das conjunturas mais complicadas que já existiram na história portuguesa”, afirma o historiador português Fernando Dores Costa. Dom João não era um grande líder. Tornou-se rei por destino. Herdou o trono porque seu irmão mais velho, dom Miguel, morreu de varíola. Dom João assumiu como príncipe regente em 1792 – sua mãe, a rainha Maria I, era doente mental – quando a situação era totalmente desfavorável. O sistema de monarquia absoluta que vigorava em Portugal estava em declínio na Europa desde a Revolução Francesa, em 1789. Enquanto toda a Europa evoluía, Portugal era um país atrasado, que não tinha passado por nenhuma das três grandes revoluções modernas: religiosa, científica e política.

Além da doença da mãe, seu casamento com a princesa espanhola Carlota Joaquina era um inferno. “As relações entre eles eram péssimas desde os primeiros anos do século XIX”, afirma Dores Costa. Tiveram nove filhos e trocaram cartas bastante cordiais. No lado político, dona Carlota participou de pelo menos duas conspirações para afastar o marido do trono. Não teve sucesso em nenhuma delas. Ao contrário do que se pensa, não há sinais públicos de que Carlota tenha traído dom João – apesar de isso ser quase certo, pois os casamentos reais daquele tempo eram simples contratos diplomáticos. A historiadora Lúcia Bastos encontrou vestígios capazes de sugerir que dom João teria tido uma filha ilegítima com uma das damas de companhia de sua mulher. De acordo com ela, a imagem caricata de um rei bobalhão, glutão e enganado pela mulher deve ser contrastada com a do estadista que teve de vencer adversários mais fortes para plantar as sementes do que um dia viria a ser uma nova nação.


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